Uma imagem chocou a todos nós. Nela se vê um líder religioso impondo a mão sobre pistolas dispostas sobre uma mesa, auxiliado por um guarda civil fardado e ladeado pelo prefeito de Curitiba, Rafael Greca, e seu vice-prefeito Eduardo Pimentel. Ao fundo, se nota a presença de polícias militares e outros possíveis assessores políticos e afins.
Trata-se de uma celebração – no mínimo estranha – de substituição do armamento utilizado pela Guarda Civil Municipal, que deixará de usar revólveres calibre 380 para portar pistolas 9 mm. A compra das novas armas, fabricadas pela empresa tcheca CZ, segundo críticos, significa uma completa e perigosa militarização da corporação e faz de Curitiba a primeira cidade a utilizar abertamente armamento de guerra dentro do espaço urbano. Em que pese que, a Guarda curitibana esteja envolvida no assassinato do jovem Mateus Silva Noga, que celebrava com amigos a CNH, no centro da cidade.
Muitos nas redes sociais manifestaram indignação ao ver “um padre” abençoando armas, mas um olhar mais perito saberia, pelo paramento, que é um diácono e não um padre. Os diáconos são parte do clero católico e devem cooperar com os bispos e padres ao anúncio do Evangelho, ao serviço da mesa da Palavra e da Eucarística, e sobretudo, à caridade em uma diocese. O diácono na foto é Marcos Daniel de Camargo, capelão católico da guarda, desde 2015, e membro da corporação, desde 1988. Além desses detalhes eclesiásticos, o que importa destacar é a benção – de deus? da igreja? Sei lá – não seu ministro. Claro, se poderia questionar se é lícito no “estado laico” tal celebração religiosa confessional, ou se é permitido pela Igreja a imposição sobre as armas do Estado. Porém, vejo essa imagem como símbolo da relação Fé e Política.
O que se abençoa de fato não são apenas armas. Deixemos aos liturgistas a discussão sobre esse sacramental. O que se abençoa é um projeto de segurança pública que tem nos matado. Abençoa-se essa crença de que há um inimigo a ser combatido. Como disse o prefeito na ocasião: “as armas são para proteger as famílias curitibanas”. Proteger contra quem? Contra o povo. Uma crença que tanto à direita quanto à esquerda tem seus fiéis: apologetas conservadores e progressistas de que mais polícias e mais armas geram mais segurança. Os mais reacionários são ferrenhos defensores da técnica de matar dos militares. Fico imaginando as possíveis preces do ministério, tipo, “deus abençoe essas armas que serão usadas contra a vida de nossos jovens no Largo da Ordem. Amém?”
O problema então não é a benção, mas o que se abençoa. O profeta Isaías fala da transformação das espadas em enxadas, das lanças em foices. Precisamos, então, nos dedicarmos a essa conversão. Abandonar a guerra (às drogas, aos pobres) rumo à promoção e garantia daquilo que sustenta a vida dos nossos povos. É claro que não se trata de pensar uma paz branca, sem nenhum tipo de conflitos, pois nossa história se faz pelos conflitos e assim seguimos adiante. Talvez devêssemos abençoar/construir outros projetos. Por exemplo, ao redor do mundo, tem crescido movimentos de desinvestimento nas polícias, pois se percebe que a segurança pública prescinde de uma força policial, sobretudo, depois do assassinato do afroamericano George Floyd por policiais. Quer dizer, não é mais polícia com mais armamento letal que faz uma comunidade mais segura.
Uma comunidade está mais segura quando seus direitos são garantidos, quando possui os meios de defesa de sua soberania e autodeterminação, enfrenta as causas de violências, por exemplo, o uso abusivo de álcool, e desenvolve práticas de resolução pacífica dos conflitos pela própria comunidade. Os mais radicais e ousados defendem a abolição das polícias, e no mesmo golpe as prisões. Não se fala em apenas desmilitarizar-las. Não é o fim da polícia militar apenas, mas o fim das polícias. O que se pretende não é criar polícias melhores, mais técnicas, mais amigáveis ou mais comunitárias. Vejam que projeto bélico das UPPs, no Rio de Janeiro, foi reeditado como “Cidade Integrada“. E, lá vamos nós, contar os corpos, até quando?
A abolição, portanto, é projeto propositivo de fazer da instituição policial obsoleta. Começa por não acionar essa máquina de matar e prender o povo através dos Boletins de Ocorrência (B.O.). Uma prática antirracista mínima com repercussões reais na vida de jovens e comunidades racializadas e empobrecidas. Alvos número 1 das ações policiais. A pesquisa da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR) da Baixada Fluminense mostra como a experiência entre o povo e as polícias é desnecessária. 93% das pessoas participantes responderam que não confiam na polícia e 80% não ficaram satisfeitas com a prestação de serviços da polícia.
Para fazer avançar a pauta da segurança pública para além das armas e das polícias, os abolicionistas da IDMJR recomendam ampliar o debate sobre desinvestimentos nas polícias e enfrentamento a tecnologias de produção de morte, como aparelhos de reconhecimento facial; fazer o debate sobre o abolicionismo das polícias e fim das prisões em favelas e bairros de periferia; estimular as produções de pesquisas sobre abolicionismo das polícias e prisional nas universidades, organizações de pesquisas e movimentos sociais; oportunizar experiências de espaços construtores de sociabilidades não punitivistas; luta por reparação histórica para o povo negro; implementar processos de justiça de transição e justiça restaurativa; e a construção de projeto político anticapitalista, antirracista e antipatriarcal.
No mesmo sentido, num contexto rural, a Teia dos Povos apontam para as seguintes tarefas rumo a autodefesa: criar conselhos de mediação e solução de conflitos; fortalecer o processo de formação de valores anticapitalistas, antirracistas e antipatriarcais; afastar o tráfico de drogas e outras organizações que promovam o vício nos territórios; construir uma integração com outros territórios; garantir uma reserva de alimentação para os dias de conflito; conhecer o território; treinar a juventude e mulheres para autodefesa pessoal e coletiva; conhecer as ferramentas de segurança e instalar sistemas autônomos de vigilância; e saber quem são e o que fazem os potenciais inimigos do povo.
Assim, o problema aqui é político. Não se trata de uma questão normativa ou moral ou litúrgica: diácono Marcelo poderia ou deveria abençoar as armas? Deus quer ou não quer que seus ministros abençoe ou porte armas? O que diria a Tradição sobre isso? Não podemos individualizar o caso e buscar a punição do ministro com qualquer um daqueles adjetivos que infelizmente voltaram ao vocabulário das nossas comunidades. A benção, ao fim e ao cabo, é um problema político e a questão que devemos buscar responder é: qual projeto de cidade/país nossas comunidades quer abençoar/construir? “Sê sensato, escolhe a Vida”.
Texto original publicado no Brasil de Fato.
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